24 de março de 2011

Traduzir

Como tradutor literário, senti-me menos fantasmal do que como intérprete. Tinha que tomar decisões, explorar o espanhol em busca de cambiantes e cadências que correspondessem às subtilezas e esbatimentos semânticos (…) e também às sumptuosidades retóricas da língua literária russa. Um verdadeiro prazer.
Quando, uns tempos depois, me chegaram exemplares da antologia, ofereci um deles, com dedicatória, a Salomón Toledano. (...) 
- O teu ganha-pão está em perigo - advertiu-me. - Um tradutor literário é um aspirante a escritor, quer dizer, quase sempre, um plumitivo frustrado. Alguém que nunca se resignaria a desaparecer no seu ofício como nós, os bons intérpretes, fazemos. Não renuncies à tua condição de cavalheiro inexistente, meu caro, a não ser que queiras acabar como clochard.
Mario Vargas Llosa,
Travessuras da Menina Má


Tantas vezes que falei sobre este assunto com a B., ela sim tradutora literária, e tantas vezes ela foi o meu Salomón Toledano: não queiras vir para a tradução literária, deixa-te estar onde estás que estás bem!

Mas eu sou bem mais como Ricardo, o protagonista de Llosa: 'menina boa' como ele é 'menino bom' (mas isso é história para outro dia...), não intérprete, mas tradutora técnica (o que me coloca precisamente na situação de desaparecer no meu ofício, porque se pressupõe que o texto seja tão objectivo e 'limpo de estilo' quanto possível).      

Após uma primeira incursão no mundo da tradução já não técnica, mas ainda não totalmente literária, reconheço na perfeição a busca pela interpretação certa dos devaneios linguísticos do autor e o esforço para encontrar um equivalente semântico em intensidade e sentido no nosso português! E é isso que faz do meu trabalho um prazer! É isso que me faz puxar pela cabeça, que me consome mais tempo, que me dá liberdade para produzir, criar, para além da mera transposição de língua para língua!

Diria que sou demasiado sensata (ou pelo menos o espero!) para me deixar tornar uma clocharde, mas sei que preciso de ver a minha vida profissional temperada pela literatura para sentir que, de alguma forma, estou a criar. 

Imagem daqui

3 comentários:

  1. E começares a escrever em nome próprio, aqui, neste cantinho, uma qualquer história que esteja a navegar na tua cabeça, não?

    Acredito que tens capacidades para tal!

    Beijo

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  2. Que bom que gostas do que fazes! Pessoalmente, nunca gostei muito de fazer traduções quando ocasionalmente me pediram... sinto alguma dificuldade em mudar o registo de pensamento, :)
    Penso que essa busca pelos equivalentes semãnticos e que se torna mais livre, de criação é recompensadora sem dúvida. Estou de volta é verdade (see my blog)!!Beijinhos

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  3. MRPereira:
    Não é uma ideia totalmente posta de parte, é verdade. Seja como for, isso implica uma certa disciplina de escrita e um plano, coisas que tenho alguma dificuldade em assumir aqui neste cantinho... Quem sabe um dia...

    Obrigada pelo elogio!
    Beijinho

    Eva Gonçalves:
    Nem queria acreditar quando vi que estavas a comentar-me! Um regresso tão inesperado quando bem-vindo! Fico contente!!
    Já passei pelo teu blog, ainda que só de fugida! Em breve faço uma visita mais "demorada"!
    Beijinho

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