30 de março de 2011

Opostos

Da chama intermitente da vela sobe um fio de luz que trespassa o vermelho escuro do vinho no copo e termina numa linha ténue que se desenha na minha mão. Os dedos vão acariciando distraidamente o pé do copo. Notas de jazz ecoam pela sala. O calor emana deste espaço fechado e quente, um refúgio nesta noite ainda fria dos primeiros dias da Primavera.

Não sei como vim aqui parar. Não sei por que artes acabei por me encontrar sentada neste espaço acolhedor, partilhando uma mesa com este rosto inesperado, depois de um passeio a passo incerto mas despreocupado pelas ruas de Alfama. A cada passo que dou sobre a calçada desta cidade fico mais encantada por ir conhecendo mais um e outro dos seus encantos.



Aqui, sentada à meia luz enquanto se entrecruzam em mim sentidos em notas de som e sabor, o olhar suspenso ao fundo, olha para a banda mas vê palavras. Palavras ditas instantes atrás por entre sorrisos e recordações: 

“Sabes que estamos em pólos totalmente opostos?” 

Sei, sei bem. Revivem-se as linhas do passado. Eu, a menina recatada e responsável. Tu, o enfant terrible e cabeça de vento. Eu refugiava-me nos livros. Tu na guitarra. E o que mudou entretanto? Muito pouco além dos anos e das experiências. E contudo aqui, ao som desta música introspectiva e tão viva ao mesmo tempo, dois pólos opostos sentam-se lado a lado, conversam naturalmente, em pé de igualdade e sintonia, e relembram dois miúdos que embirravam um com outro e que hoje já mal conseguem reconhecer em si próprios.

Serão as diferenças que se diluem com o tempo? Ou estarão os opostos destinados a reencontrar-se uma e outra vez ao longo dos seus percursos?...

6 comentários:

  1. Eu sou da opinião de que os opostos se esbatem com o tempo! E que as pessoas, à medida que vão amadurecendo, vêem as coisas de outra forma e apesar de ainda estarem apaixonadas pela sua rebeldia e por aquilo que no passado as tornava enfants terribles, comportam-se mundanamente com elas! Não procuram fazer disso um escape mas sim um hobbie. E se os que estão à volta dele conseguirem conviver e até apreciar esse hobbie, melhor!

    Beijo

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  2. :)Apetece sussurrar entre uma música e outra no bar que sim, os opostos parecem decididamente destinados a se cruzarem every now and again. São as leis da Física ... :) Beijinhos

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  3. gostei imenso do texto :-)
    fez-me viajar no tempo e nos pormenores que descreves

    beijinho!

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  4. MRPereira:
    Acho que passa precisamente por aí. Neste caso, o facto de ele ser uma peste em miúdo (que me picava constantemente) irritava-me solenemente. Neste momento, alinho no jogo e vou retribuindo, o que acaba por se tornar simplesmente uma forma de interacção descontraída.
    Um hobbie, uma imagem de marca, sim, acho que tens razão!
    Beijinho

    Eva:
    Completamente! Por muito pouco provável que nos pareça, cruzamo-nos tantas vezes com acasos assim. Venha muita música sussurrante como esta! ;)
    Beijinho*

    Andy:
    Obrigada!
    É bom começar a voltar a conseguir escrever coisas assim. O prazer é imenso, assim como o é o facto de o reconhecimento das pessoas que, como tu, me lêem!
    Beijinho

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  5. Algumas histórias merecem ser vividas, passe o tempo que passar.

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  6. Nós nunca sabemos no que nos vamos tornar, porque as experiências moldam-nos e muito provavelmente até nos afastam daquilo que já fomos. E podem aproximar-nos daqueles que achámos opostos a nós, esbatendo assim as tais diferenças que falas. Cada passo que damos traz novos cambiantes à nossa personalidade.
    Gostei muito de te ler assim.
    Beijos*

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