Da chama intermitente da vela sobe um fio de luz que trespassa o vermelho escuro do vinho no copo e termina numa linha ténue que se desenha na minha mão. Os dedos vão acariciando distraidamente o pé do copo. Notas de jazz ecoam pela sala. O calor emana deste espaço fechado e quente, um refúgio nesta noite ainda fria dos primeiros dias da Primavera.
Não sei como vim aqui parar. Não sei por que artes acabei por me encontrar sentada neste espaço acolhedor, partilhando uma mesa com este rosto inesperado, depois de um passeio a passo incerto mas despreocupado pelas ruas de Alfama. A cada passo que dou sobre a calçada desta cidade fico mais encantada por ir conhecendo mais um e outro dos seus encantos.
Aqui, sentada à meia luz enquanto se entrecruzam em mim sentidos em notas de som e sabor, o olhar suspenso ao fundo, olha para a banda mas vê palavras. Palavras ditas instantes atrás por entre sorrisos e recordações:
“Sabes que estamos em pólos totalmente opostos?”
Sei, sei bem. Revivem-se as linhas do passado. Eu, a menina recatada e responsável. Tu, o enfant terrible e cabeça de vento. Eu refugiava-me nos livros. Tu na guitarra. E o que mudou entretanto? Muito pouco além dos anos e das experiências. E contudo aqui, ao som desta música introspectiva e tão viva ao mesmo tempo, dois pólos opostos sentam-se lado a lado, conversam naturalmente, em pé de igualdade e sintonia, e relembram dois miúdos que embirravam um com outro e que hoje já mal conseguem reconhecer em si próprios.
Serão as diferenças que se diluem com o tempo? Ou estarão os opostos destinados a reencontrar-se uma e outra vez ao longo dos seus percursos?...