1 de fevereiro de 2010

O banco de jardim

Para chegar ao centro, atravesso sempre o pequeno jardim.
Não preciso de o fazer.

Poderia contorná-lo pela calçada junto à avenida e chegaria lá provavelmente até mais depressa. Mas prefiro passar pelo jardim. Insignificante para a maioria, visto como um mero adorno de um espaço que ficaria demasiado vazio de outra forma.

Para mim, porém, é mais como um reduto de fuga.

Meia dúzia de árvores já centenárias, alguns metros de relva, tímidos caminhos desenhados a cascalho branco e salpicados de canteiros de flores, três ou quatro bancos de jardim em torno do canteiro principal, normalmente animado por pequenos festins de pombas que por ali vão descobrindo alimento.

Apesar do ritmo acelerado da cidade, quando entro na sombra daquelas árvores, o meu corpo obriga-se a abrandar, como se respeitasse a solenidade deste pequeno oásis à beira da extinção.

Num dos bancos de jardim, avisto-os, ainda que de costas. O tom cinza dos cabelos denuncia a sua idade. A cabeça dela encostada ao ombro dele denuncia a sua cumplicidade.

Vou-me aproximando discretamente ao longo do carreiro de cascalho.

Alheios aos meus movimentos, assim como de outros que vão passando mais apressados e alheados do que eu, lá continuam.

Começo a perceber ligeiros acenos de cabeça e, aos poucos, vou começando a discernir sorrisos sussurrados que vão presenteando um ao outro. A sua presença é tão perfeita e harmonizada que nem as pombas se incomodam e, confiantes, vão passando bem perto dos seus pés.

O meu caminho passa à frente do seu banco de jardim. Passo ao mesmo ritmo que já trazia e avisto-os pelo canto do olho. Receio sequer incomodar a harmonia daquela cena de tela com algum movimento brusco. Receio infundado, porém. Ninguém os poderia incomodar.

Ninguém poderia incomodar a beleza e a serenidade com que estes dois seres lindos atravessaram a sua vida, de mãos dadas e cúmplices.
Ninguém poderia questionar todas as lições que aprenderam lado a lado e um com o outro.
Ninguém poderia duvidar que este amor, sim, é inquebrável e irrefutável.

São aqueles sorrisos, aqueles segredos quase desnecessários, aquela forma como permanecem imunes aos sons e movimentos do que se vai passando à sua volta que desvendam essa vida maravilhosa que os dois - um só, afinal - têm para contar.

Envelhecer assim não é senão rejuvenescer, crescer, ser sempre mais e maior.

Sigo o meu caminho.
Já ao fundo do pequeno jardim, olho para trás. Nada mudou à minha passagem! Fico feliz por não os ter perturbado.

Continuo a passar naquele mesmo sítio tantas vezes, tantos anos depois... e, de cada vez que o faço, ainda abrando o passo, fecho discretamente os olhos e revejo aquele quadro de amor ancião que ficou gravado ali, que ficou guardado na minha memória. E tantas vezes desejo poder ver pintada com estas mesmas tintas a imagem da minha própria velhice...




Para o desafio de Fevereiro,
subordinado ao tema Velhice
 
Foto minha

14 comentários:

  1. Anna uma das coisas que me satisfaz ver é um casal de idosos unidos pelo amor, pelo respeito e pela amizade. Páro e fico a olhar para eles. Quem não gostaria de envelhecer assim: acompanhado pelo amor da sua vida?
    Beijinhos

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  2. Todos queremos algo assim. Boa sorte.

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  3. Oh Anna, fiquei a saber agora que tinhas blogue, rrss! Pois no teu perfil de seguidora do meu, não aparece. Gostei imenso deste teu texto, deste retrato de uma velhice acompanhada, cúmplice em bancos de jardim e revejo-me completamente nessa vontade da minha velhice ser assim, exactamente como pintaste. E gostei do blogue... :)

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  4. Brown Eyes:
    Concordo! E foi por isso mesmo que o tema Velhice me levou a escrever sobre este pedacinho precioso da minha memória (recente, ainda).
    São raros os casais que encontramos assim, mas quando de facto nos cruzamos com eles... Dá vontade de parar para contemplar, talvez para tentar perceber o seu segredo...

    Johnny:
    Um objectivo a alimentar, não?
    Boa sorte também para ti! :)

    Eva Gonçalves:
    Também acabo de descobrir que o meu perfil não tinha os links... Nunca tinha reparado! Obrigada por mo fazeres notar! Já está corrigido!
    Ainda bem que te revês nestas minhas palavras e que compreendes a magia deste quadro...

    Vejo que a minha participação na Fábrica de Letras vos trouxe até aqui e fico muito feliz por isso! Sejam bem-vindos! Voltem sempre e espero que gostem!
    *

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  5. Infelizmente a velice nem sempre é como a descreves, mas é desejável que assim fosse...

    Deixo-te uma música da Mafalda Veiga que expressa na perfeição a imperfeição da velice...

    "Parado e atento à raiva do silêncio
    De um relógio partido e gasto pelo tempo
    Estava um velho sentado no banco de um jardim
    A recordar fragmentos do passado

    Na telefonia tocava uma velha canção
    E um jovem cantor falava na solidão
    Que sabes tu do canto de estar só assim
    Só e abandonado como o velho do jardim?

    O olhar triste e cansado procurando alguém
    E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém
    Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver
    A imagem da solidão que irão viver
    Quando forem como tu
    Um velho sentado num jardim

    Passam os dias e sentes que és um perdedor
    Já não consegues saber o que tem ou não valor
    O teu caminho parece estar mesmo a chegar ao fim
    Para dares lugar a outro no teu banco do jardim

    O olhar triste e cansado procurando alguém
    E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém
    Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver
    A imagem da solidão que irão viver
    Quando forem como tu
    Um resto de tudo o que existiu
    Quando forem como tu
    Um velho sentado num jardim"

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  6. Eu acredito fortemente que vou terminar a minha vida assim, a amar o mesmo homem, e a passear de mãos dadas com ele. É um dos meus desejos. Sou assim tonta e romântica. Adorei esta crónica, está muito bem escrita.

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  7. Me inscrevi e estou participando.
    http://sandrarandrade7.blogspot.com/
    Venha e conferi o meu texto sobre a velhice.
    Nossa grande alegria é chegar lá, com muita sabedoria.
    Um grande abraço
    Sandra

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  8. Quantas lembranças boas tem aqui.
    Muito maravilhoso. Um bela casa que nos reporta aos velhos tempos..
    Saber viver cada momento desse é ter a certeza, que conquistamos muitas coisas.
    Sandra

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  9. Também queria muito isso para mim. Chegar lá com o meu homem, com todas as nossas coisas dentro da alma, de mãos dadas num banco de jardim, ou no sofá lá de casa.
    Beijinho

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  10. Gostei particularmente do teu texto porque apresenta uma visão poética da velhice. Sei, todos sabemos que a realidade é outra! Contudo, todos podemos sonhar que pode ser da forma como a narraste.

    Adorei a frase «Envelhecer assim não é senão rejuvenescer, crescer, ser sempre mais e maior.»

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  11. Letras Escrevinhadas:
    Infelizmente tens razão... há um lado menos bom em relação a este tema... e a música da Mafalda Veiga retrata-o na perfeição...
    Seja como for, e ainda que raros, encontram-se ainda casos como este que pintei... E são esses que deveriamos reter e com eles alimentar a esperança para o futuro...
    *
    Olga:
    Bem-vinda, muito obrigada pela visita e pelo elogio! Passei pelo seu blog também e gostei! Espero que sim, que esta seja uma metáfora aplicável ao seu futuro! E desejá-lo é meio caminho andado, não? ;)

    Sandra:
    Oi! Ainda não tive oportunidade para espreitar a sua participação! É bom relembrar momentos felizes assim... não apenas aqueles que vivemos, mas também os que presenceamos, tal como este do banco de jardim...

    Meldevespas:
    Acho que o queremos todos! Tal como disse à Olga, aspirá-lo já é um passinho em frente... ;)

    Natália Augusto:
    Inadvertidamente acabaste por responder à Letras Escrevinhadas, lá atrás. Podemos sempre sonhar com algo melhor do que a triste realidade! Para que serviria sonhar, se não nos permitisse pintar a realidade com cores mais vivas?...

    A todos vós que passaram por cá pela primeira vez, obrigada por perderem uns momentos com as minhas palavras! Ficarei muito feliz se vos vir por cá mais vezes!

    Beijinhos

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  12. Que tens veia poética já sabia, mas este texto deixou-me o coração apertado...quem sabe se algum dia chegarei a partilhar momentos destes com o amor da minha vida?

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  13. Também desvio caminhos para observar coisas melhores. Gostei muito

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